quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Insonância!


Já é tradicional. A madrugada vem, a insônia continua, Jô segue o seu roteiro, enquanto os lixeiros se comunicam aos berros durante a coleta do lixo urbano. O detalhe mais interessante desse fato, é que a linguagem exercida por eles, é totalmente indecifrável para um leigo. Apenas os iniciados no assunto conseguem assimilar os urros, gargalhadas, e balbuciações. Esses sons passam a impressão de felicidade e divertimento. Estranho e incompreensível aos olhos da nossa sociedade capitalista.

Exceto a rotina já descrita antes, a madrugada sempre apresenta alguma surpresa. Surpresas inesperadas, engraçadas, trágicas, eróticas e etc. Certo domingo, não conseguia dormir de jeito nenhum. O lado mais sério de meu cérebro, extremamente irritado pela displicência teimosa do lado criativo, relembrava que segunda era dia de “São Pega”, e que a preguiça não me deixaria acordar no horário determinado.

Enquanto assisto um filme do Van Damme, para ver se surge uma centelha de sono, ouço comprimentos e uma conversa animada. A curiosidade de um insoniado é voraz. Tão logo ouço as vozes, aciono o botão de mudo, calando as lamúrias dos ninjas que apanhavam do dragão branco. Era uma conversa amigável, permeada por gargalhadas sinceras. A conversa vinha da rua, da frente de uma igreja misteriosa ao lado de meu prédio. Em frente a uma pracinha dominada por cachorros e onde nunca vi uma criança. Os amigos se entusiasmam cada vez mais, porém distância da conversa até a minha janela, evita que eu decifre as alegrias bradadas em plenas duas da manhã. Sem entender muita coisa, vou começando a perder o interesse. As agressões do Van Damme me chamam atenção e desligo o mudo. Ouço “pof, soc e catabum”, mas ao fundo, continuo ouvindo os amigos cada vez mais entusiasmados.

Passa intervalo, volta a porrada, a madrugada avança e continua com seu silêncio revelador, só interrompido pelas gargalhadas dos amigos. A alegria alheia já me estava me incomodando. O lado sério dizia “Esses folgados não sabem que preciso acordar cedo amanhã?”, e o criativo respondia prontamente “deixa eles, tu está é com curiosidade!”. Passeio pela vasta gama de canais disponíveis em minha pequena antena. É crente se aconselhando, filme B italiano, venda de jóias, clipe de rap e o Van Damme. Mesmo com todas essas opções, meu sono continuava fugindo. E os amigos não paravam... Foi então, que após um silêncio prolongado ouço o seguinte verso: “Eu caminhei sozinho pela rua...”, cantado em duas vozes, uma delas, a segunda, em falsete. EU NÃO ACREDITEI. Os dois amigos não eram apenas amigos, e sim uma dupla sertaneja. A canção continuou: “Cantei com as estrelas e com a lua, sentei no banco da praça tentando te esquecer, adormeci e sonhei com você. No sonho você vem provocante, me deu um beijo doce e me abraçou, e bem na hora H, no ponto alto do amor, já era dia e o guarda me acordou”. A minha aparente perplexidade se transforma em riso, enquanto a dupla chega ao famoso refrão de Bruno e Marrone.

Não me contenho, abro a janela para ter certeza que é real o que eu estava ouvindo. O mais intrigante de tudo é que eles realmente cantavam bem. Deixo o Van Damme batendo nos seus oponentes em silêncio para melhor ouvir os dois cantantes. A música acaba, mas logo já iniciam outra, e outra, e outra. Meu repertório sertanejo já não conhecia essas canções. Penso em ir até a rua, me oferecer para ser o produtor dessa dupla, com certeza teriam futuro. Enquanto ouço as músicas e penso qualquer coisa, Morfeu vai se esgueirando pelo quarto. Aproxima-se e com a rapidez de um lince me faz pegar no sono. Criatura sacana! Enquanto estou entediado ele se esconde, mas quando encontro algo peculiar e interessante, ele vem e me adormece sem nenhuma satisfação.

Na manhã seguinte, acordo me questionando se realmente presenciei aquilo. Chego à conclusão que não era um fruto de minha imaginação. Sem refletir muito, faço os rituais matinais e vou para universidade. Dia cansativo, nem toco nas reminiscências da madrugada. Quando a próxima madrugada vem chegando, me mantenho atento, esperando mais um ensaio da dupla. Essa madrugada parecia mais monótona. Até os lixeiros não demonstravam a mesma alegria. Espero até enquanto agüento os ataques de Morfeu. Durmo.

Já se passaram meses e a dupla nunca mais se apresentou enfrente a igreja, tornando mais intrigante o ocorrido. Madrugadas se sucedem e outras passagens de realismo fantástico se apresentam. Mas até agora, nenhuma tão estranha como está.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mto bom! Narrativa perfeita com um vocabulário bacana.
Remeteu mto bem uma noite insonenta! hehe...

massa!