sexta-feira, 14 de março de 2008

Crônica de um desempregado

20 anos. Está na hora de entrar definitivamente no mercado de trabalho e se sentir totalmente integrado a uma sociedade para qual somos preparados desde o berço. Qual o primeiro passo? Carteira de trabalho. Então vamos a ela.

Em um dia preguiçoso das férias, levanto lá pelas 9h30 com o intuito de ser um cidadão trabalhador. Tomo um breve e simplório café com leite enquanto assisto desenho animado. A minha pressa era pouca, assim como meu saldo bancário. Escovo os dentes, pego o player e saio em busca da minha aposentadoria.

O sol agride meus olhos há pouco acordados. Cinco minutos de caminhada e chego ao local. Pequeno e lotado, móveis velhos e caras de tédio. Entro e fico analisando, procurando aonde pegaria a senha de atendimento. Sou interpelado por um jovem, provavelmente mais novo que eu, que pergunta o que eu procurava. Digo que queria fazer a carteira de trabalho, e ele responde que as senhas da manhã já haviam acabado, mas que ao meio-dia e meia eles distribuiriam as senhas da tarde. Coço a cabeça e volto para casa.O relógio marca 12h20, pego meu boné e saio mais uma vez na procura da minha carteira de trabalho. Alguns metros antes de chegar ao lugar, encontro um amigo, cumprimentos feitos digo que vou fazer minha carteira de trabalho para receber um dinheiro aí. Ele ri e diz: “To aqui desde às 11 e as fichas já acabaram”. Senti o drama. O negócio seria acordar cedo.

Muitos dias se passam e o sono não deixa o lado trabalhador conseguir seu passaporte. O ritmo das férias fez com que o meu relógio biológico ficasse totalmente atrasado. Dormir antes das três da manhã? Acordar antes das 11? Nem pensar. Isso que eu adoro acordar cedo.
Manhãs a fio tento acordar às seis para poder postular a uma senha e fazer a bendita carteira de trabalho. Entretanto, nem com despertador no volume máximo ou reza braba eu acordei. Solução? Utilizar um velho e gasto provérbio popular: “Se não pode vencê-lo, junte-se a ele”. Então tá! Se não consigo acordar, a solução é não dormir.

Foi o que fiz depois do Lost: fui pra internet arrecadar sons pra minha discoteca. Depois para não deixar o sono chegar, joguei umas 15 partidas de FIFA (cada partida são oito minutos). Quando meus olhos já não suportavam mais, fui assistir o jornal matutino. Já são quase 7 horas, me apresso para sair.Repetindo o ritual, cravo um boné na cabeça, pego meu player e saio em busca da carteira. Nas ruas já com um número grande de estudantes, ainda se ouvia o som da manhã, melhor que qualquer rock’n roll do meu player. Cinco minutos de caminhada e me deparo com uma fila de mais ou menos 50 pessoas, faltando uma hora e meia para a abertura do serviço.

Realmente não é fácil ser trabalhador no Brasil. Muitas das pessoas que estavam ali procuravam seu seguro desemprego ou mesmo vaga de emprego. Muitos jovens, muitos idosos, mas todos silenciosos e olhando para o nada. Exceto uma ‘gordinha’ (nada de pejorativo) que olhava toda a fila. Qualquer mínimo movimento era motivo para a senhora, com uma sacola de plástico nas mãos, torcer o pescoço.

O silêncio era fúnebre, só interrompido pela batida dos saltos-altos das garotas que com suas maquiagens iam para o cursinho. O rapaz que estava a minha frente era meu conhecido. Era meu vizinho na minha cidade, mas nunca havíamos trocado mais que cumprimentos curtos, nem sabia o seu nome. Pelo visto ele não me reconheceu. Nessas horas isso é o melhor. Ficar uma hora parado trocando frases com algum que não se conhece direito, apenas por educação é no mínimo enfadonho.

Resolvo colocar meu player e me absolver dos sons alheios. Começo a refletir: aquela fila só existe porque é em busca de serviços obrigatórios e estatais, oferecidos pra trabalhadores de baixa renda. Imagine se fosse uma fila para empresários? No mínimo teríamos senhoras alegres distribuindo café e bolachas.

Divago, vou longe, lembro de Marx e Maquiavel. Quando, como uma pedrada, a senhora atrás de mim começa a emitir sons com seu celular novo. Um celular de abrir e com câmera, com cara de que foi o presente de natal da senhora de vestes modestas. Além de alto, o som era extremamente agudo. Toda a fila começou a olhar de onde vinha aquele som abominável.

A empolgação da mulher com o jogo me parecia uma vontade de mostrar a si própria as utilidades do novo presente. Antes de se comprar um celular moderno, ele passa de futilidade a necessidade. “Como vou viver com um celular sem jogos legais?” Mas depois com o aparelho, as funções vão ficando corriqueiras e se tem a nítida noção que não passa de um aparelho de telefone. Depois de dez minutos de muita poluição sonora, a senhora advertida pelos olhares da fila, coloca seu celular novamente na bolsa.

Uma hora e quinze de espera, e finalmente o serviço é aberto. Nesse momento olho para trás e vejo o dobro da fila de quando cheguei. Pego a ficha oito (de vinte). Mais quarenta minutos de espera e cadastro feito.

O primeiro passo foi dado. Agora sou verdadeiramente um desempregado, espero que seja por pouco tempo.